TONY TORNADO

Tony Tornado – nascido Antônio Viana Gomes – é paulista de Mirante do Paranapanema e sua história e imagem se fundem com o que compreendemos como parte substancial do Cinema Brasileiro e da Música Preta do Brasil. Aos 93 anos, sua trajetória foi de um menino em situação de rua no Rio de Janeiro nos anos 1940, a engraxate, paraquedista do exército e lutador de boxe. Teve uma atuação controversa no submundo do Harlem, em Nova York, nos anos 1960, e se estabeleceu como um dos precursores do movimento da black músic brasileira inspirada na luta pelos direitos civis, tornando-se, logo na sequência, um dos rostos negros mais conhecidos da TV e do cinema, mesmo sem ter sido protagonista em grandes produções. Incansável, Tornado é a síntese do trabalhador da imagem, numa rara longevidade que revela a complexidade e os paradoxos da presença negra nas telas e na cultura brasileira.

18ª CINEOP – Tony Tornado, Homenageado da Mostra – Fotos realizadas no Rio Scenarium – Foto Leo Lara/Universo Produção

Nos anos 1960, iniciou sua carreira artística como cantor e dançarino na TV no programa Hoje é Dia de Rock, na TV Rio, onde interpretava sucessos de cantores negros de língua inglesa, como Little Richard. Naquela mesma década, mudou-se para os Estados Unidos. Morou no Harlem – o centro da cultura negra em Nova York – onde chegou a ser traficante e cafetão. Teve contato com os movimentos culturais e políticos que influenciaram a cultura popular, o comportamento e resistência racial no ocidente. Era época efervescente da luta pelos direitos civis por lá, encabeçada por Martin Luther King Jr e Malcom X, entre outras figuras históricas. E, naquela Nova York, conheceu um outro brasileiro com quem construiu um diálogo de décadas: o também cantor Tim Maia.

De volta ao Brasil em 1968, trouxe as referências dos EUA e conseguiu retomar sua carreira de cantor em uma boate, onde fingia ser estrangeiro sob o pseudônimo de Jhonny Bradford. No ano seguinte, junto do Trio Ternura e já se chamando Tony Tornado, defendeu a música BR-3 no V Festival Internacional da Canção. Saiu de lá campeão e consagrou-se como um soul man brasileiro. Dois anos depois, em 1972, ele ingressava na teledramaturgia, de onde não mais saiu.

Ainda nos anos 1970, ao lado de Dom Filó, ele foi um dos líderes de um dos principais movimentos culturais e de resistência negra no país. Inspirado no funk dos EUA, com forte presença da música e estilo de James Brown, o movimento promovia bailes em que se dançava uma mistura de soul, jazz, funk, samba e forró – a estrangeira black music fundia-se como parte da música preta brasileira. Além das referências musicais, Tornado também trouxe do país norte-americano o reforço subjetivo e cultural na luta contra o racismo. Aliou-se ao que já havia de resistência no Brasil e ajudou a estabelecer o Movimento Black Rio. Os bailes black eram espaços de sociabilidade negra pela música e pela consciência racial. Durante os eventos cariocas, ele frequentemente fazia discursos que reverberavam o movimento Black Power com palavras de ordem como “negro é lindo”. Tornado afirma ter “abrasileirado” a cultura negra estadunidense que chegava por aqui e se reconhece como um dos responsáveis por aliar consciência social/racial nesses espaços aparentemente de lazer.  Por conta dessa atuação, que pode ser vista na 18ª CineOP no longa Baile Soul, dirigido por Cavi Borges e Marcio Graffiti (2022), Tornado foi perseguido por agentes da ditadura Civil-Militar.

Sua prisão mais famosa – e da qual se orgulha imensamente – foi em 1971. Naquele ano, ele participou pela segunda vez no Festival Internacional da Canção. Numa intervenção durante a apresentação de Elis Regina, então presidente do Júri, ele subiu ao palco e ergueu o punho cerrado, numa evidente referência aos Panteras Negras. Elis interpretava a canção Black is Beautiful. “Para mim, foi o máximo. Para mim, era a minha entrada. Eu fiquei do lado da Elis Regina e fiz o Black Panther”, ele lembra[1]. Tornado foi algemado e imediatamente preso. “Apesar da truculência, eu tinha conseguido meu intento, né, que é o esclarecimento geral de que negro é lindo. Fui preso com muita satisfação. Eu não poderia me negar a fazer isso. Eu desci aqui com essa missão. Eu tenho que cumprir essa missão, porque ainda falta muito.” Tornado pode não considerar sua missão cumprida e essa energia segue colocando esse homem, esta força, entre nós, a influenciar novas gerações – na música, no cinema e na TV.

No longa Ori, lançado em 1989 e dirigido por Raquel Gerber, a historiadora Maria Beatriz Nascimento ressalta o “fenômeno do aquilombamento”, ou de “resistência cultural negra” representado pelos bailes black daqueles anos 1970.

A memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história, do seu passado. Como se o corpo fosse o documento. Não é à toa que a dança para o negro é um momento de libertação. […] A linguagem do transe é a linguagem da memória. (Maria Beatriz Nascimento, em Ôri)

18ª CINEOP – Tony Tornado, Homenageado da Mostra – Fotos realizadas no Rio Scenarium – Foto Leo Lara/Universo Produção

Tornado é esse corpo-documento, agente e testemunho da história do Brasil e do Cinema Brasileiro – no que o país e seu cinema decidem mostrar ou esconder. Sua imagem – nas quase quatro dezenas de filmes e outras mais de quarenta produções televisivas – entrecruza as memórias de um povo e sugerem muito mais do que deveriam dizer a maioria dos papéis coadjuvantes em que atuou com tanta dignidade. Paradoxalmente à ideia de aquilombamento que Maria Beatriz Nascimento desenvolve – e que a ação concreta de Tornado representa – alguns dos papéis que ele defendeu no cinema e na TV poderiam ter servido para reforçar a ideia de submissão. Rever, por exemplo, o longa Quilombo, de Cacá Diegues – selecionado para esta homenagem – é olhar para um passado em que a representação do negro na tela se dava a partir de um olhar verticalizado, de cima para baixo, subalternizante, mesmo que o papel interpretado por ele tivesse sido de um rei. Ainda assim, ver Tony Tornado neste filme é olhar para um fenômeno de resiliência e reconfiguração, a exibir a força do personagem e do homem que o defende.

Nos anos da pornochanchada, em mais de uma dezena de filmes ele encarou de frente a hiperssexualização dos homens negros. Além disso, interpretou capitães-do-mato, bandidos, salvadores e outros tantos estereótipos, com uma inteligência estratégica muito peculiar para fugir das limitações impostas por visões enclausurantes que guiaram muitos daqueles roteiros. A poeta e pesquisadora Leda Maria Martins nos fala de um tipo de  potência do corpo negro, do ator negro que, mesmo em uma condição de papéis subalternizantes, consegue “radicalizar a caricatura de modo a tentar desconstruir a própria caricatura, num contraponto ao que o minimiza”[2]. Tony Tornado nos faz ver, a todo tempo – na tela e na vida – essa potência.

Cleber Eduardo
Tatiana Carvalho Costa

Curadores Temática Histórica